“O design atua de fato na mudança das hierarquias que existem na sociedade”
Ivo Pons é designer, professor, pesquisador e idealizador do projeto Design Possível
Fale um pouco sobre sua trajetória. De a sua formação até o nascimento do projeto Design Possível, como foi o processo?
Eu sou designer. Me formei em Desenho Industrial em 2001, fiz mestrado em Educação, Arte e História da Cultura e estou concluindo o doutorado na área de Arquitetura e Urbanismo, estudando metodologia de projetos ligados à sustentabilidade. Antes de vir à universidade e tornar-me professor, trabalhei em indústria e tive um escritório. Nesta época, quando tinha escritório, comecei a fazer trabalhos no terceiro setor.
Na minha família há um histórico de gente que já atuou no terceiro setor e eu acabei descobrindo uma área que não conhecia. Normalmente, o pessoal que trabalha no neste setor tem a impressão de que trabalhar ali é trabalhar como voluntário, fazendo uma coisa que não se está acostumado a fazer. As pessoas falam assim: “Ah, sou um empresário e vou lá pintar uma creche”. E eu acabei descobrindo, por uma indicação de uma tia, uma ONG em que eu poderia aplicar design, ou seja, eu podia fazer design para eles e provocar transformação social. Isso mudou a maneira como eu olhava para o design, a maneira como eu olhava para a minha própria profissão e, mais tarde, até a maneira como fui me aprofundando nos estudos.
De 2005 para 2006, nasceu o design possível, que começou como uma atividade de extensão da universidade. Eu tinha essa experiência de trabalho em comunidade e, no Salão do Móvel de Milão, conheci um professor da Universidade de Firenze que tinha experiência na África. Aí resolvemos fazer um projeto juntos. Depois o projeto acabou perdendo essa característica por causa da distância e da dificuldade, mas os alunos envolvidos aqui no Brasil ficaram muito engajados e resolvemos tocar o projeto pra frente. Hoje, o Design Possível é uma ONG que utiliza o design como uma ferramenta de inserção comercial para comunidades carentes e, mais do que isso, promove o e a transformação de pesquisa em design.
De acordo com o site do Design Possível, pessoas formadas pela Universidade de Firenze ainda fazem parte da equipe.
Quando digo que hoje não temos mais o vínculo, o que estou querendo dizer é que, antes, tratava-se, explicitamente, de um projeto de cooperação internacional e extensão. Hoje ele perdeu esse caráter. Temos pessoas da Itália que vieram para cá e gente daqui que foi pra lá, mas nós não seguimos com esse mesmo modelo. Ainda há italianos, mas já são formados, eles não tem mais o vínculo com a universidade. A relação não é mais pautada nisso. Ele nasceu sendo isso, mas hoje essa não é a razão principal, a razão principal é o trabalho desenvolvido pelas comunidades daqui.
Mais especificamente, o que é Design Possível?
O Design Possível, hoje, é uma associação sem fins lucrativos que faz um trabalho de promoção e aplicação do design, usando a sustentabilidade como direção. Fazemos o trabalho de desenvolvimento de produtos junto a comunidades carentes, o trabalho de comercialização desses produtos, o desenvolvimento de identidade de marca, o trabalho de ativismo e de estimular o protagonismo estudantil, que é outra forma de estimular o design, e temos um trabalho de gestão interna, para tornar a própria organização sustentável. São quatro grandes áreas dentro do Design Possível: comercial, administrativa, pedagógica, que é o trabalho de formação, e de comunicação.
Temos três embriões do Design Possível em outras partes do Brasil. Está nascendo um Design Possível em Manaus – que já tem, inclusive, um projeto –, em Curitiba e em Florianópolis – eu vou esse final de semana para lá. Buscamos sempre usar essa metodologia e essa experiência que tivemos para poder interagir com outros lugares. Claro que o Design Possível de Manaus não vai ser igual ao Design Possível de São Paulo – nem tem essa pretensão –, mas a gente tem conhecimentos adquiridos ao longo desses quase cinco anos de trabalho que podem auxiliar o pessoal de lá a trabalhar com design sem sair da área social.
Acho que esse foi o aprendizado que a gente teve com o design possível. Na universidade, todo mundo sonhava em trabalhar em uma fábrica. O Design Possível era uma experiência para os alunos saberem que existiam outras possibilidades. Ninguém de dentro da faculdade sonhava em sair e trabalhar no terceiro setor. Passados cinco anos, hoje isso é possível. Vejo alunos que se formaram que hoje vivem do trabalho ligado ao terceiro setor. O trabalho deles é promover esse desenvolvimento social.
As células do Design Possível que estão nascendo em outros lugares do Brasil estão também vinculadas a alguma universidade local ou trabalham apenas com alguma comunidade de artesãos?
Normalmente, é um grupo de estudantes que se reúne e decide trabalhar nessa ação social, às vezes inspirados por uma palestra ou alguma outra atividade que promovemos. Normalmente, temos pessoas de mais de uma universidade. Elas começam a se reunir e trabalhar para tornar o projeto sustentável, buscando transformar isso em um “negócio” para as comunidades, e tentando aplicar aquilo que eles aprenderam na faculdade. Em dois desses lugares, professores também participam, então não é uma atividade isolada dos estudantes, tem um envolvimento dos docentes.
Eles estão tentando trilhar os seus próprios caminhos, entender qual é a particularidade, por exemplo, quando eu trabalho com uma comunidade em Manaus, que tem um outro tempo, uma outra sazonalidade, ou em Florianópolis, que é um outro tipo de localidade, uma outra característica de produto e de consumo.
Você havia falado sobre a idéia corrente de que trabalhar no terceiro setor é fazer trabalho voluntário. Há remuneração àqueles que participam do projeto? Inclusive aos alunos?
Hoje, no design possível de São Paulo, temos três voluntários – de uma equipe de dezessete –, todo os outros são remunerados. Quando você é estudante, você é estagiário. Nessas células nos outros lugares, o trabalho começa como uma ação voluntária, até que apareçam os primeiros projetos.
Não há uma única via, a gente ainda está descobrindo como vai ser. Manaus acabou de conquistar o primeiro cliente, que é uma organização que apóia grupos produtivos e está contratando o Design Possível de Manaus para fazer um trabalho de desenvolvimento de marca e embalagem para três diferentes comunidades. Então eles vão começar trabalhando e recebendo. Em Florianópolis, eles conseguiram uma parceria com o CEFET e estão começando um trabalho cujo apoio ainda é “acadêmico”. Eles ainda não têm atividades sustentáveis, mas a sustentabilidade vem dessa parceria com a universidade. A gente imagina que não há uma receita, o importante é ir cutucando para encontrar a solução possível em cada um dos lugares.
O Design Possível está preocupado principalmente com a função social do design. O design tem uma função social? O que o design pode oferecer à sociedade? Há exemplos de onde e de que modo isso ocorre? Quais os projetos viabilizados pelo Design Possível que provam que o design tem mesmo uma função social?
O design tem uma relação intrínseca com o social. Aquilo que a gente faz é para a sociedade, o fim maior de tudo o que qualquer designer faz tem a ver com a sociedade. O que muda no trabalho que o Design Possível faz é o que a gente quer e para onde a gente quer que essa sociedade vá.
No instante em que eu desenvolvo um carro, que eu desenho um abajur ou que eu faço um sofá, eu sei que alguém vai usar e isso vai mexer com a sociedade de alguma forma, gerando emprego, estimulando a produção etc. Ótimo. Os benefícios desse meu trabalho podem vir para o industrial, para o comerciante ou podem ser articulados em outras direções. Não há uma única direção, há várias, e a gente está testando algumas delas. Pode-se desenvolver produtos cujos fins sejam a resolução de situações de problema ou a promoção de melhorias na sociedade. Por exemplo, uma vez fizemos um workshop de móveis temporários para desabrigados. Ninguém tinha nos contratado e chamamos um grupo de profissionais e um grupo grande de estudantes, e colocamos todo mundo junto, num sábado, para desenvolver projetos que seriam dados para a sociedade.
Temos projetos em que a matéria-prima, a origem, é social, ou seja, você tem uma produção que pode até ser industrial, mas você, como designer, como articulador dessa cadeia, trabalha para que exista a inserção de uma comunidade, de um produto regional ou de um acabamento que é, de repente, culturalmente restrito no Brasil. A gente pode ter a produção ligada à sociedade, ao beneficio social. Pode-se contribuir com o trabalho de comunidades produtoras, facilitando sua inclusão nos mercados. Pode-se facilitar o descarte, enfim.
A maneira com que o designer se relaciona com a produção, com a matéria-prima ou com o fim do projeto não muda, o que muda é aquilo que ele quer para a sociedade. Se em um projeto normal em que eu sou contratado por um industrial, a única coisa com que estou preocupado é que aquele projeto tenha sucesso econômico para que isso retorne para o industrial, no trabalho que fazemos a gente não quer só o sucesso econômico, a gente quer a perspectiva de continuidade da sociedade do ponto de vista da sustentabilidade, quer que o benefício desse sucesso econômico seja destinado àquele que tem maior dificuldade na localidade. É evidente que a gente faz parcerias com diferentes níveis de mercado – participam os comerciantes, participam os industriais –, mas a idéia é que o fim maior desse processo beneficie alguém que hoje está excluído. Quando você faz isso, o design atua de fato na mudança dessas hierarquias que existem na sociedade, atacando onde estão os problemas.
Não existe um único problema, os problemas são diferentes em cada um dos lugares. Em uma cidade como São Paulo, a gente trabalha muito com a periferia, que é a área desprovida do aparato governamental. Fazemos um trabalho de inclusão para fazer com que essas pessoas que estão à margem se incluam no mercado e possam tanto consumir quanto produzir, fazendo parte desse processo do qual hoje elas não fazem. Talvez o Design Possível de Manaus encontre uma realidade completamente diferente e a questão social a ser trabalhada lá seja a relação com as comunidades ribeirinhas distantes, por exemplo.
O que muda é o sentido daquilo que estamos fazendo, não a ação em si. Projetar continua sendo projetar, a gente continua tendo especificações do cliente do mesmo modo, temos problemas de produção, problemas de logística, isso não muda. O bom projeto sempre vai ser o bom projeto, o fim que você quer obter com isso é que se transformou.
Se olharmos para a própria atuação do designer há três ou quatro décadas, veremos que ele estava muito preocupado em viabilizar produtivamente um produto, isto é, ele queria que aquele produto fosse produzido em série. Depois disso, o design passou a ter um enfoque mais comercial, então não era só transformar aquele produto em uma peça a ser vendida em série, fácil de ser produzida, era também torná-lo atrativo para o mercado consumidor. E aí começamos a usar estratégias ligadas ao design, como o marketing. Mais recentemente, há uma percepção de que o design articula toda a cadeia do produto, e isso faz com que ele tenha uma responsabilidade maior que não se restringe apenas à etapa de produção e de comercialização. É todo o processo. Dessa forma, não podemos olhar só para o industrial ou só para o mercado que está sendo atingido, só para o consumidor, precisamos olhar para a sociedade como um todo.
O slogan de vocês diz: “Design ecologicamente correto, socialmente envolvido, economicamente justo”. Este é exatamente o tripé da sustentabilidade. Embora o termos sustentabilidade apareça no site e nos materiais de divulgação do Design Possível, aparentemente ele é usado de maneira discreta. A impressão que tenho é a de que vocês falam de sustentabilidade sem utilizar esta palavra. É isso mesmo? Isso é proposital? Vivemos um momento em que o termo sustentabilidade é muito empregado – por vezes, sem qualquer critério –, até mesmo como estratégia de marketing. Vocês estão seguindo um caminho contrário?
A gente vem da área acadêmica, nascemos dentro da universidade. Sou professor, coordeno uma pós-graduação em Design para a sustentabilidade, no Mackenzie, então tenho uma preocupação muito grande com aquilo que a gente diz e aquilo que a gente faz. Sustentabilidade é um termo que, hoje, está sendo amplamente utilizado, mas suas definições ainda não caíram para a população de um modo geral. Academicamente, ele até tem definições bem sólidas, mas a maneira com que as pessoas se apropriam para comunicação, para o marketing, é muito pouco profunda. A gente tenta usar o design como comunicação e, através dele e do trabalho que a gente faz, mostrar o que é que estamos fazemos. É sustentabilidade? É, porque a gente desenvolve a viabilidade econômica desses grupos, a gente usa, na maior parte das vezes, materiais reutilizados, recuperados ou reciclados e, de fato, o benefício dessas duas ações vai para área social. Então, é sustentabilidade. Mas, se eu disse só “sustentabilidade”, algumas pessoas, principalmente as pessoas que não são da área de design, não estão envolvidas, o leigo que acessa o nosso site querendo entender o que são os produtos ou que comprou o produto, leu na tag e quer entender um pouco mais sobre o projeto, vão nos enxergar como mais uma entidade no meio de tantas outras que dizem que fazem sustentabilidade, nos associando a empresas como o Banco Real e o Santander. A gente não quer ser igual nem ao Real, nem ao Santander, então talvez por isso falamos a mesma coisa de uma maneira diferente.
Como o Design Possível enxerga a relação entre design e artesanato?
Essa é uma relação que existe e eu acho que a gente deve partir deste ponto. Há puritanos dos dois lados: uns dizem que o artesanato deve permanecer intocado e outros dizem que design que mexe com artesanato não é design. Há esses dois extremos. O que eu vivencio é que o design tem uma influência que pode permear todos os tipos de produção, inclusive o artesanato. Fica um pouco difícil de dizer onde é que está o limite desta relação, ou se existe, de fato, um limite. É verdade o que dizem os puritanos do lado do artesanato, que muitos designers, por não saberem ou por não terem clareza daquilo que pretendem, vão em direção ao artesanato e o matam. E é verdade o que dizem os puritanos do lado do design, que se você tomar o design unicamente como desenho industrial, na medida em que você se aproxima do artesanato, você se afasta dessa outra conotação, dessa outra origem. Mas acho que nenhum dos dois lados está totalmente correto. São experiências mal sucedidas do ponto de vista do artesanato e sentidos de utilização do design distantes da sua origem.
O artesanato hoje é uma realidade muito forte dentro do Brasil. Somos um país de pessoas que tem essa inquietude por fazer, pelo trabalho manual e pelo artesanato. O artesanato feito daquela maneira mais tradicional como a gente conhece permanece em regiões mais distantes. À medida que as pessoas foram se concentrando nas cidades, elas trouxeram essa cultura artesanal para a cidade e essa cultura se mesclou com o mercado, se misturou com outras culturas de pessoas que vieram de outros lugares, e tivemos o surgimento de outro tipo de artesanato, de outro tipo de manualidade, que é o que encontramos, por exemplo, na periferia. Quando chegamos à periferia, a gente encontra gente de Minas, do Nordeste, do Sul, com diferentes características artesanais. Eles perderam aquela identidade única, que o artesanato de raiz, da origem mesmo, do lugar dessas pessoas, tem. Isso não tira delas a vontade de fazer, não tira delas a vontade de construir. Ao contrario, cria uma nova perspectiva, porque essa pessoa, aqui na cidade, está ligada ao mercado de consumo, está ligada ao mercado de produção, ela quer fazer coisas. Mas aquele artesanato de origem não pode mais ser mais feito aqui, porque ela não tem mais a mesma cultura, não tem as pessoas de apoio, muitas vezes não tem os mesmos materiais. Então ela precisa inventar novas formas de fazer. Nessa realidade é que eu acho que o designer é ainda mais importante, porque ele pode potencializar essa ação para facilitar este processo. Nas comunidades mais distantes ele pode ajudar, mas o trabalho dele deve ser ainda mais criterioso, porque o risco de aculturar e transformar uma coisa que é histórica para o lado ruim é maior. Você sempre vai transformar. A partir do momento em que se cria a interferência, há transformação, mas, se você não tem ética e clareza sobre aquilo que você está fazendo, você corre o risco de anular, e é isso que é ruim.
Aqui no Brasil, a gente discute pouco até onde vai o limite do designer e até onde vai o limite do artesão e como esta articulação pode ser feita. Esta falha não é só dos órgãos que trabalham com design ou de pessoas que promovem o artesanato, é uma falha acadêmica também. O artesanato é muito malvisto dentro da universidade e a universidade não tem clareza em enxergar o papel do designer dentro deste mercado artesanal que pode ser aplicado com design. Com isso, a gente não forma gente preparada para lidar com isso e, ao não formar gente preparada para lidar com isso, a gente não tem discussão nesta área. Então acho que o primeiro ponto é exacerbar essa discussão, abri-la, para conseguir fazer com que pessoas que hoje estão dentro da universidade, os alunos e os professores, comecem a discutir esse papel e as pessoas que estão fora, que estão no mercado, comecem a atuar com mais propriedade e critério, para construirmos conhecimento nessa relação. Isso vai tanto favorecer quem já está fora, quanto ajudar a construir quem ainda está dentro da universidade.
De que forma o Design Possível promove esta interação? O designer vai às comunidades fazer uma interferência, adequando os produtos ao mercado? Entrega um desenho para o artesão desenvolver? O artesão participa desse processo?
Nesses grupos, a gente faz um trabalho de formação, e o objetivo é emancipá-los. Então a maneira com que a gente age dentro do grupo é diferente da forma com que os designers estão acostumados a agir dentro de uma indústria, por exemplo. Em uma indústria, eu posso desenhar o produto, ir até o cara da ferramentaria e dizer: “Olha, faça isso”. Em um grupo produtivo, em uma comunidade artesanal, se eu quero que ele se aproprie daquilo, eu nunca vou chegar com uma solução pronta. O artesão industrial, o ferramenteiro, é um funcionário, então a relação que ele tem com a empresa é outra: “Me paga, que eu venho ficar aqui tantas horas e eu faço”. A relação que temos com os grupos é diferente. Ajudamos pessoas a se tornarem grupos produtivos e ajudamos esses grupos produtivos a encontrarem uma fatia de mercado. Para isso, tem que ser deles e não nosso. Então o nosso trabalho é muito mais de articulação e mediação do que de identificação propriamente dita. Evitamos ao máximo chegar com idéias pré-concebidas. Colocamos os problemas para eles serem atores deste projeto. É claro que, nos diferentes momentos que o grupo vive, isso também muda.
No Projeto Arrastão, por exemplo, estamos indo para o terceiro grupo. O primeiro já está saindo da fase de incubação e vai se emancipar; o segundo vai entrar na fase de formação empreendedora; o terceiro vai começar agora, é um grupo novo, de mães. Para o grupo que está se emancipando, eu posso dar problemas que eles vão me trazer soluções em produtos, porque eles já vivenciaram esse processo. O grupo que está entrando na fase empreendedora precisa de um acompanhamento muito maior, precisa de um tutor durante o processo, senão eles não vão chegar ao resultado final e, se eles não chegarem ao resultado final, que é um produto para ser apresentado ao cliente, eles não vão conseguir vender, não vão ganhar dinheiro e o grupo não vai existir. O grupo que está começando precisa de ainda mais. Tudo o que eles vão ter nessa primeira etapa é uma consolidação técnica entre eles, então eles precisam ainda mais de acompanhamento.
Portanto, essa relação muda nos diferentes lugares em que a gente atua, mas ela é muito mais de mediação, de um olhar diferente, de entender como esse produto pode se inserir no mercado, do que um trabalho de construção de um novo produto propriamente dito. Às vezes, o trabalho que fazemos é simplesmente de reposicionamento: “Olha, esse mercado que você está é um mercado de baixo valor agregado e não dá para competir com esse tipo de produto; que tal usar essa mesma expertise e trabalhar em uma outra área?”. Então, às vezes, é um aconselhamento. Sinto que os grupos têm menos problemas com o desenvolvimento de produtos e mais problemas com gestão, com produção e com organização logística, organização de entregas. E acho que trabalhar essas outras áreas também é papel do designer. É mais difícil conseguir fazer com que o produto chegue com qualidade, fazer com que ele seja logisticamente adequado do ponto de vista do transporte, esse tipo de coisa. Esses são os aspectos que tem uma maior interferência do designer, mais do que a estética, pelo menos no caso das comunidades mais artesanais – essa é uma bagagem que elas já trazem. Mas, como falei, cada grupo tem uma característica diferente.
Você comentou que o artesanato ainda é muito malvisto nas universidades. No entanto, no 1° Prêmio Objeto Brasileiro, tivemos, entre os finalistas, três projetos oriundos em universidades (Design Possível, Imaginário Pernambucano e Sempre Savassi). Está havendo uma mudança?
Acho que estamos vivendo justamente este momento de descoberta das universidades e dos professores – principalmente os mais novos, os que estavam estudando na década de 1990, começo dos anos 2000 e que viram o florescer desse trabalho unindo design e artesanato. O que acontece? As pessoas estão voltando às universidades, alguns estão virando professores, como é o meu caso, e eles estão contribuindo para esse processo de transformação. Digo que existe uma resistência da universidade porque a sinto, sinto nos professores mais antigos, na maneira como eles tratavam estes trabalhos de maneira pejorativa. Hoje menos, hoje eles aceitam, indicam, até porque vêem o nível de sucesso que os trabalhos e projetos têm – estamos florescendo nessa área. A questão é que a universidade não tem essa cultura, não tem essa tradição.
Apoiar esse tipo de projeto, como o Design Possível ou esses outros em diferentes partes do Brasil, faz com que se construa conhecimento, e isso vai mudar, depois, a maneira como se ensina. Os relatos que tenho de projetos em diferentes lugares sempre contam como o projeto começa como uma atividade de pesquisa ou de extensão e não como uma atividade acadêmica, não dentro de sala de aula. Ele começa fora e depois ele vai trazer para dentro da sala de aula essa experiência. A gente já vem tendo um processo de transformação intenso a partir dos anos 2000 e, depois de 2005, este processo se aprofundou ainda mais, a gente começa a ver florescer em muitos lugares essa mesma experiência e potencial. Sinto isso até pela vontade da existência do Design Possível em outros lugares, quer dizer, o fato de termos gente querendo fazer em diferentes localidades é justamente isso, é a aplicação do design em si, é a vontade de professores e alunos de fazer, de romper com a maneira com que hoje os cursos estão construídos. Para isso, eles estão se apropriando, tentado desenvolver suas próprias ferramentas, seus próprios conhecimentos.
Quais as particularidades dos projetos que nascem dentro das universidades?
Acho que varia muito de acordo com a forma como o projeto nasce. Ele pode estar dentro da universidade e ter uma relação só acadêmica ou ele pode ter uma relação mais “mercadológica”. É claro que a origem dos estudantes, dos professores e de todos aqueles que estão envolvidos com este projeto acaba contribuindo nesta definição. Você traz o seu histórico, então se você é um professor mais ligado ao mercado, se alguém que já tem um escritório começar um projeto ligado ao terceiro setor, ele vai trazer esse olhar para dentro desse projeto. Quando a universidade estimula uma ação, ela tem um desejo claro: um trabalho extra-muro. Trata-se de uma atividade de extensão, em especial nas universidades. A universidade se sustenta no tripé pesquisa, ensino e extensão. Cada vez mais as universidades vem fortalecendo esse pé de extensão. A universidade é diferente da faculdade e é diferente do curso. Quando é universidade, a atividade de extensão é estimulada e nasce com essa vontade de pegar o conhecimento da pesquisa e do ensino, e aplicar fora para ver se ele é verdadeiro. Na faculdade, nem sempre isso acontece.
O recorte dado no nascimento do projeto não garante que ele vai seguir assim para sempre, é só olhar o próprio Design Possível, que nasceu muito mais como uma atividade de extensão. Eu poderia dizer “Olha vai sempre ser um projeto acadêmico, e a gente vai ficar trocando os estudantes, o projeto não vai se desenvolver”, mas o problema é que não existia mercado para que esses estudantes que estavam dentro do projeto saíssem para trabalhar com design social. Então a gente criou o mercado. A gente criou uma organização que pudesse aceitar esses estudantes, para que eles pudessem seguir construindo. Ou seja, o fato da gente ter nascido dentro da universidade não nos prendeu àquela origem de: “Ah, só vou pesquisar, fazer iniciação científica, construir o meu trabalho de conclusão, escrever um livro e o meu projeto vai ficar preso a isso”. Não. Inclusive, para consolidar a parte econômica – sustentável – e poder dar continuidade ao trabalho, deixamos a pesquisa em segundo plano. Sempre publicamos trabalhos, sempre tem gente envolvida com trabalho de graduação, mas o foco era tornar o Design Possível uma organização. E, no começo desse ano, fundamos, dentro do Design Possível, um negócio chamado LEDS, Laboratório de Estudos em Design e Sustentabilidade, que é uma tentativa de fazer, agora, o contrário. Se a gente está tendo sucesso econômico e na formação, agora está na hora da gente transformar esse sucesso de novo em conhecimento, em experiência e retorná-lo para a universidade – na forma de livro, de publicação, enfim. Diferente das outras áreas do Design Possível – a comercial, pedagógica – a gente entende que esse laboratório de estudos e pesquisa é transversal. Claro, ainda está no início, está nascendo dentro do Design Possível, então ele ainda vai criar forças, mas a idéia é que ele beba dessas experiências mais diretas para poder retornar. Olhando para essas duas observações, acho que nenhuma delas está errada, nem também totalmente certas. Acho que existe a possibilidade das duas coisas, de você ficar preso pelo universo acadêmico, se essa for a sua postura – e, de fato, a universidade tem esse desejo de: “Ah, esse projeto é meu” –, mas a universidade fornece também um respaldo para o início, que permite maior ousadia do que um negócio simplesmente focado em venda ou desenvolvimento de produtos teria. Um negócio nunca estaria preocupado com a perpetuação do conhecimento, com a seqüência da atividade, por isso que você encontra, nos trabalhos acadêmicos, maior fundamentação com relação ao que está sendo feito.
Como os alunos recebem este tipo de projeto? Há uma nova geração preocupada com todas essas questões?
As pessoas desta faixa etária buscam, agora, outro tipo de sucesso. Não sou eu que estou falando isso. A expressão geração Y foi criada justamente para designar esta mudança. Hoje, jovens buscam muito mais o engajamento. O sucesso econômico, que é o que a geração anterior buscava, não é mais suficiente para satisfazer e trazer felicidade. Sinto que uma porcentagem maior dos alunos tem, de fato, outros objetivos. Querem, claro, ganhar dinheiro, construir uma vida bacana, alguns querem se tornar professores, outros querem ser famosos, mas muitos deles querem usar o conhecimento, usar aquilo que eles escolheram como profissão, em prol da sociedade. Sem deixar de ganhar dinheiro, sem deixar de ficar famoso, querem que aquilo que eles estão fazendo faça sentido, que faça sentido de uma maneira mais ampla, querem se sentir bem com aquilo que eles fazem. Acho que essa é uma preocupação, um tipo de engajamento, que as gerações anteriores tinham em menor proporção. Havia menos gente preocupada, se aquilo que estavam fazendo fazia sentido ou não. “Ah, mandou eu jogar lixo nuclear aqui no buraco, está pagando bem, estou jogando”. Até esse tipo de expressão é muito característica: “Tá pagando bem, que mal tem?”. Não é isso? “Pagando, tudo bem”. Hoje há uma porcentagem menor de gente que escolhe se submeter a qualquer tipo de trabalho ou a qualquer tipo de ação, simplesmente para conquistar dinheiro ou fama. Pelo menos na área de design, eu sinto que tem cada vez mais estudantes engajados ou buscando esse sentido. No Mackenzie a gente tem um semestre que é Projeto Socioambiental, então agora eles têm essa experiência dentro da grade, que é uma coisa recente, de três ou quatro anos para cá. Eu vejo que esses alunos, mesmo depois, indo para o mercado, mudam o olhar, muda a maneira como eles vão se relacionar com o mercado. Conseqüentemente, a gente vai ter, em cinco ou dez anos, uma mudança do mercado, o mercado vai estar mais aberto e mais permeável a produtos que tragam um outro tipo de benefício social. É um processo de mudança gradativa e essas experiências dentro da universidade, esses trabalhos de referência, são importantes para mostrar que é possível. Porque senão a primeira impressão de quem está na faculdade, está procurando, é: “nessa área eu não vou, eu não quero, isso é um sonho que não é válido”.
E agora o outro lado. Como o mercado tem recebido esse tipo de produto?
A gente tem níveis diferentes de consumidores. No Design Possível a gente tem operações de venda, que são tanto para o consumidor final quanto para empresas. No trabalho direto com o consumidor, eu acho que ele se surpreende quando a gente diz que aquele produto é um produto feito com material recuperado, ou que aquele produto é feito numa comunidade carente. Conseguimos alcançar um nível de qualidade e de confiabilidade no design, que faz com que o produto não pareça com a imagem que o consumidor tinha do produto social. A gente usa, brincando, a expressão “guarda-pó”. A maior parte dos produtos sociais hoje, principalmente aqueles que não utilizam o design como estratégia, como ferramenta, são “guarda-pó”, ou seja, coisas que você compra para ajudar a organização e o grupo, mas que não vai utilizar de fato. Com a entrada do design, você tem a possibilidade de mudar isso, usar aquela mesma técnica, o saber, o conhecimento material, mas tornar aquilo uma coisa mais útil para o usuário. A gente tem até casos engraçados. No caso do Arrastão, quando os consumidores vêem as sacolas, dizem: “Não dá para me dar duas dessas aqui?”. “Não dá, porque elas são feitas de material recuperado, não tem duas iguais”. “Mas como assim não tem duas iguais? Eu quero outra igual!”. Então tem também uma mudança de percepção do consumidor. O material tinha sido jogado fora e virou uma bolsa, está bem acabado. Aí o consumidor fala: “Mas foi feito na favela mesmo?” Eles ficam até um pouco incrédulos. O mais difícil, hoje, é fazer com que os produtos evidenciem a história que está por trás dele. Esse é um papel importante do designer. Estamos trabalhando em um projeto que se chama A invisível história por trás dos produtos. A bolsa comum não diz de onde ela veio, quem foi que produziu. Então a gente precisa tentar comunicar isso. Esse é o papel do designer agora, com um trabalho de comunicação mais profissional, um trabalho de identificação e identidade dos produtos, para que o consumidor perceba qual é aquele produto. Se fizermos um produto na comunidade da mesma forma que os chineses fazem produtos na China, a gente nunca vai conseguir competir, porque você olha para as duas sacolas, por exemplo, e elas são iguais, não tem diferença. A diferença está na história que cada um deles carrega e no benefício que cada um deles, ao ser comprado pelo consumidor, gera. Isso é o que as empresas também procuram. As empresas querem comprar produtos sustentáveis, que tenham um engajamento social, porque elas querem ligar a marca delas a esse tipo de postura. Não tem outra intenção. Não é porque é mais barato, não é porque quer ajudar. As empresas precisam se aproximar desse mercado para melhorar sua imagem e fazer jus à divulgação sustentável que elas estão fazendo. Não adianta eu bradar para todo mundo que eu quero ser sustentável e depois comprar sacolas de PVC feitas na China. Eu preciso buscar outros fornecedores, outras formas de fazer com que o meu negócio exista com outro tipo de consumo. O consumo não muda só no consumidor na ponta, muda também nas empresas. Temos até trabalhado na formação de grupos de compradores sociais. Essa questão da sustentabilidade, do desenvolvimento social, já está consolidada no alto escalão. Os gestores, a parte estratégica, o marketing, todo mundo já entendeu e divulga isso. Só que ainda não é fácil capilarizar isso dentro da estrutura, porque o responsável pelas compras, o pessoal do almoxarifado, esses aí não entenderam ainda. Teremos agora esse trabalho de fazer isso descer das esferas superiores para a estrutura da empresa. E aí o responsável pelas compras vai perceber que pode comprar um produto de uma comunidade e pode comprar um produto de uma empresa. Às vezes ele vai optar pela empresa e às vezes ele vai optar pela comunidade. E os dois vão ter benefícios, resultados e imagens completamente diferentes, muitas vezes sendo o mesmo produto. Você pode ter o mesmo produto e um resultado de imagem ou de logística completamente distintos. É o que os consumidores já perceberam há mais tempo. Se eu tenho que comprar, porque não escolher alguma coisa que traga benefícios para a minha sociedade, para aquilo que está perto de mim? Se eu vou ter que comprar uma cadeira, vou escolher uma que ajude a não ter, depois, um menino no sinal, que ajude a não ter desabamento na favela, que ajude a melhorar os problemas que hoje a gente encontra em um ambiente como São Paulo.
Em 2008, fui, junto com uma colega, conhecer a favela Monte Azul onde há, inclusive, uma loja com produtos do Design Possível. Em determinado momento, dois rapazes passaram por nós e um disse para o outro: “Olha os gringos aí”, em um tom bastante pejorativo e expressando um grande desconforto com a nossa presença. Como os designer e alunos – em sua maioria brancos, de classe média ou alta – são recebidos nas favelas em que vocês trabalham?
Essa é a primeira imagem que vai cair. E este é, talvez, um produto que, a médio prazo, tenha maior sucesso dentro do Design Possível. Tenho três alunos no Mackenzie que são ou eram da Monte Azul. O trabalho de convívio com a comunidade, também muda o perfil do universitário. Toda segunda e sexta-feira, eu dou aula para o Samuel, que trabalha no operacional e dou aula para o Ronaldo, que está na loja. Claro, eles se sentiram estimulados, a gente facilitou o acesso, conseguimos bolsa etc., porque a gente esteve lá e despertou isso neles. Antes deles, o Roberto da Monte Azul também tinha feito esse trabalho. A gente tem outros dois alunos do Projeto Arrastão. Essas são as pessoas que eu imagino que, a médio prazo, vão substituir o Design Possível nessas comunidades. Para que você precisa de um designer de fora? Você deveria ter um designer de dentro. Por que não formar um designer lá dentro? Em quatro anos, a gente já vai ter esses meninos formados e com experiências para atuar sozinhos tanto na Monte Azul quanto no Arrastão, sem precisar da gente. Essa vai ser a primeira mudança.
A impressão que tive na época da visita era a de que talvez eles não quisessem a presença de pessoas de fora. Pensei que, talvez, este tipo de trabalho seja mais interessante para quem está conduzindo e propondo do que para quem está recebendo, digamos assim. Muitas vezes, a simples entrada de um estranho em uma favela com o objetivo de levar projetos pode interpretada como uma violência.
Acho que quando não é bem conduzido, é uma violência mesmo. Mas, ao contrário, sinto sempre uma muito boa acolhida. Acho que ela é diferente para cada um dos lugares e precisa ser muito bem conduzida. A gente não tem aulas de relacionamento nas faculdades e isso é um conteúdo que nós temos que passar para os educadores que trabalham com a gente, senão o primeiro impacto é sempre negativo. É claro que quem está do outro lado, que já tem uma auto-estima muito mais baixa, que já tem muita dificuldade, vai ficar sempre na defensiva. Então questões muito simples, como postura, o jeito como se chega, a forma como se dirige – que em qualquer outro lugar não teriam relevância – são muito importantes neste tipo de trabalho. Tem coisas que não tem nada a ver com design. Por exemplo: é muito importante abraçar as pessoas, cumprimentar todo mundo. Esse tipo de relacionamento é sentido muito mais rapidamente do que o retorno do trabalho que você faz. É preciso um outro tipo de atitude. Talvez isso seja uma coisa minha, talvez seja porque estamos em várias organizações diferentes. Acho que este tipo de repulsa é localizada, não sinto nos outros lugares.
Reportagem extraída na íntegra do site "A Casa - museu do objeto brasileiro", disponível em: http://www.acasa.org.br/ensaio.php?id=237&modo=
Ivo Pons é designer, professor, pesquisador e idealizador do projeto Design Possível
Fale um pouco sobre sua trajetória. De a sua formação até o nascimento do projeto Design Possível, como foi o processo?
Eu sou designer. Me formei em Desenho Industrial em 2001, fiz mestrado em Educação, Arte e História da Cultura e estou concluindo o doutorado na área de Arquitetura e Urbanismo, estudando metodologia de projetos ligados à sustentabilidade. Antes de vir à universidade e tornar-me professor, trabalhei em indústria e tive um escritório. Nesta época, quando tinha escritório, comecei a fazer trabalhos no terceiro setor.
Na minha família há um histórico de gente que já atuou no terceiro setor e eu acabei descobrindo uma área que não conhecia. Normalmente, o pessoal que trabalha no neste setor tem a impressão de que trabalhar ali é trabalhar como voluntário, fazendo uma coisa que não se está acostumado a fazer. As pessoas falam assim: “Ah, sou um empresário e vou lá pintar uma creche”. E eu acabei descobrindo, por uma indicação de uma tia, uma ONG em que eu poderia aplicar design, ou seja, eu podia fazer design para eles e provocar transformação social. Isso mudou a maneira como eu olhava para o design, a maneira como eu olhava para a minha própria profissão e, mais tarde, até a maneira como fui me aprofundando nos estudos.
De 2005 para 2006, nasceu o design possível, que começou como uma atividade de extensão da universidade. Eu tinha essa experiência de trabalho em comunidade e, no Salão do Móvel de Milão, conheci um professor da Universidade de Firenze que tinha experiência na África. Aí resolvemos fazer um projeto juntos. Depois o projeto acabou perdendo essa característica por causa da distância e da dificuldade, mas os alunos envolvidos aqui no Brasil ficaram muito engajados e resolvemos tocar o projeto pra frente. Hoje, o Design Possível é uma ONG que utiliza o design como uma ferramenta de inserção comercial para comunidades carentes e, mais do que isso, promove o e a transformação de pesquisa em design.
De acordo com o site do Design Possível, pessoas formadas pela Universidade de Firenze ainda fazem parte da equipe.
Quando digo que hoje não temos mais o vínculo, o que estou querendo dizer é que, antes, tratava-se, explicitamente, de um projeto de cooperação internacional e extensão. Hoje ele perdeu esse caráter. Temos pessoas da Itália que vieram para cá e gente daqui que foi pra lá, mas nós não seguimos com esse mesmo modelo. Ainda há italianos, mas já são formados, eles não tem mais o vínculo com a universidade. A relação não é mais pautada nisso. Ele nasceu sendo isso, mas hoje essa não é a razão principal, a razão principal é o trabalho desenvolvido pelas comunidades daqui.
Mais especificamente, o que é Design Possível?
O Design Possível, hoje, é uma associação sem fins lucrativos que faz um trabalho de promoção e aplicação do design, usando a sustentabilidade como direção. Fazemos o trabalho de desenvolvimento de produtos junto a comunidades carentes, o trabalho de comercialização desses produtos, o desenvolvimento de identidade de marca, o trabalho de ativismo e de estimular o protagonismo estudantil, que é outra forma de estimular o design, e temos um trabalho de gestão interna, para tornar a própria organização sustentável. São quatro grandes áreas dentro do Design Possível: comercial, administrativa, pedagógica, que é o trabalho de formação, e de comunicação.
Temos três embriões do Design Possível em outras partes do Brasil. Está nascendo um Design Possível em Manaus – que já tem, inclusive, um projeto –, em Curitiba e em Florianópolis – eu vou esse final de semana para lá. Buscamos sempre usar essa metodologia e essa experiência que tivemos para poder interagir com outros lugares. Claro que o Design Possível de Manaus não vai ser igual ao Design Possível de São Paulo – nem tem essa pretensão –, mas a gente tem conhecimentos adquiridos ao longo desses quase cinco anos de trabalho que podem auxiliar o pessoal de lá a trabalhar com design sem sair da área social.
Acho que esse foi o aprendizado que a gente teve com o design possível. Na universidade, todo mundo sonhava em trabalhar em uma fábrica. O Design Possível era uma experiência para os alunos saberem que existiam outras possibilidades. Ninguém de dentro da faculdade sonhava em sair e trabalhar no terceiro setor. Passados cinco anos, hoje isso é possível. Vejo alunos que se formaram que hoje vivem do trabalho ligado ao terceiro setor. O trabalho deles é promover esse desenvolvimento social.
As células do Design Possível que estão nascendo em outros lugares do Brasil estão também vinculadas a alguma universidade local ou trabalham apenas com alguma comunidade de artesãos?
Normalmente, é um grupo de estudantes que se reúne e decide trabalhar nessa ação social, às vezes inspirados por uma palestra ou alguma outra atividade que promovemos. Normalmente, temos pessoas de mais de uma universidade. Elas começam a se reunir e trabalhar para tornar o projeto sustentável, buscando transformar isso em um “negócio” para as comunidades, e tentando aplicar aquilo que eles aprenderam na faculdade. Em dois desses lugares, professores também participam, então não é uma atividade isolada dos estudantes, tem um envolvimento dos docentes.
Eles estão tentando trilhar os seus próprios caminhos, entender qual é a particularidade, por exemplo, quando eu trabalho com uma comunidade em Manaus, que tem um outro tempo, uma outra sazonalidade, ou em Florianópolis, que é um outro tipo de localidade, uma outra característica de produto e de consumo.
Você havia falado sobre a idéia corrente de que trabalhar no terceiro setor é fazer trabalho voluntário. Há remuneração àqueles que participam do projeto? Inclusive aos alunos?
Hoje, no design possível de São Paulo, temos três voluntários – de uma equipe de dezessete –, todo os outros são remunerados. Quando você é estudante, você é estagiário. Nessas células nos outros lugares, o trabalho começa como uma ação voluntária, até que apareçam os primeiros projetos.
Não há uma única via, a gente ainda está descobrindo como vai ser. Manaus acabou de conquistar o primeiro cliente, que é uma organização que apóia grupos produtivos e está contratando o Design Possível de Manaus para fazer um trabalho de desenvolvimento de marca e embalagem para três diferentes comunidades. Então eles vão começar trabalhando e recebendo. Em Florianópolis, eles conseguiram uma parceria com o CEFET e estão começando um trabalho cujo apoio ainda é “acadêmico”. Eles ainda não têm atividades sustentáveis, mas a sustentabilidade vem dessa parceria com a universidade. A gente imagina que não há uma receita, o importante é ir cutucando para encontrar a solução possível em cada um dos lugares.
O Design Possível está preocupado principalmente com a função social do design. O design tem uma função social? O que o design pode oferecer à sociedade? Há exemplos de onde e de que modo isso ocorre? Quais os projetos viabilizados pelo Design Possível que provam que o design tem mesmo uma função social?
O design tem uma relação intrínseca com o social. Aquilo que a gente faz é para a sociedade, o fim maior de tudo o que qualquer designer faz tem a ver com a sociedade. O que muda no trabalho que o Design Possível faz é o que a gente quer e para onde a gente quer que essa sociedade vá.
No instante em que eu desenvolvo um carro, que eu desenho um abajur ou que eu faço um sofá, eu sei que alguém vai usar e isso vai mexer com a sociedade de alguma forma, gerando emprego, estimulando a produção etc. Ótimo. Os benefícios desse meu trabalho podem vir para o industrial, para o comerciante ou podem ser articulados em outras direções. Não há uma única direção, há várias, e a gente está testando algumas delas. Pode-se desenvolver produtos cujos fins sejam a resolução de situações de problema ou a promoção de melhorias na sociedade. Por exemplo, uma vez fizemos um workshop de móveis temporários para desabrigados. Ninguém tinha nos contratado e chamamos um grupo de profissionais e um grupo grande de estudantes, e colocamos todo mundo junto, num sábado, para desenvolver projetos que seriam dados para a sociedade.
Temos projetos em que a matéria-prima, a origem, é social, ou seja, você tem uma produção que pode até ser industrial, mas você, como designer, como articulador dessa cadeia, trabalha para que exista a inserção de uma comunidade, de um produto regional ou de um acabamento que é, de repente, culturalmente restrito no Brasil. A gente pode ter a produção ligada à sociedade, ao beneficio social. Pode-se contribuir com o trabalho de comunidades produtoras, facilitando sua inclusão nos mercados. Pode-se facilitar o descarte, enfim.
A maneira com que o designer se relaciona com a produção, com a matéria-prima ou com o fim do projeto não muda, o que muda é aquilo que ele quer para a sociedade. Se em um projeto normal em que eu sou contratado por um industrial, a única coisa com que estou preocupado é que aquele projeto tenha sucesso econômico para que isso retorne para o industrial, no trabalho que fazemos a gente não quer só o sucesso econômico, a gente quer a perspectiva de continuidade da sociedade do ponto de vista da sustentabilidade, quer que o benefício desse sucesso econômico seja destinado àquele que tem maior dificuldade na localidade. É evidente que a gente faz parcerias com diferentes níveis de mercado – participam os comerciantes, participam os industriais –, mas a idéia é que o fim maior desse processo beneficie alguém que hoje está excluído. Quando você faz isso, o design atua de fato na mudança dessas hierarquias que existem na sociedade, atacando onde estão os problemas.
Não existe um único problema, os problemas são diferentes em cada um dos lugares. Em uma cidade como São Paulo, a gente trabalha muito com a periferia, que é a área desprovida do aparato governamental. Fazemos um trabalho de inclusão para fazer com que essas pessoas que estão à margem se incluam no mercado e possam tanto consumir quanto produzir, fazendo parte desse processo do qual hoje elas não fazem. Talvez o Design Possível de Manaus encontre uma realidade completamente diferente e a questão social a ser trabalhada lá seja a relação com as comunidades ribeirinhas distantes, por exemplo.
O que muda é o sentido daquilo que estamos fazendo, não a ação em si. Projetar continua sendo projetar, a gente continua tendo especificações do cliente do mesmo modo, temos problemas de produção, problemas de logística, isso não muda. O bom projeto sempre vai ser o bom projeto, o fim que você quer obter com isso é que se transformou.
Se olharmos para a própria atuação do designer há três ou quatro décadas, veremos que ele estava muito preocupado em viabilizar produtivamente um produto, isto é, ele queria que aquele produto fosse produzido em série. Depois disso, o design passou a ter um enfoque mais comercial, então não era só transformar aquele produto em uma peça a ser vendida em série, fácil de ser produzida, era também torná-lo atrativo para o mercado consumidor. E aí começamos a usar estratégias ligadas ao design, como o marketing. Mais recentemente, há uma percepção de que o design articula toda a cadeia do produto, e isso faz com que ele tenha uma responsabilidade maior que não se restringe apenas à etapa de produção e de comercialização. É todo o processo. Dessa forma, não podemos olhar só para o industrial ou só para o mercado que está sendo atingido, só para o consumidor, precisamos olhar para a sociedade como um todo.
O slogan de vocês diz: “Design ecologicamente correto, socialmente envolvido, economicamente justo”. Este é exatamente o tripé da sustentabilidade. Embora o termos sustentabilidade apareça no site e nos materiais de divulgação do Design Possível, aparentemente ele é usado de maneira discreta. A impressão que tenho é a de que vocês falam de sustentabilidade sem utilizar esta palavra. É isso mesmo? Isso é proposital? Vivemos um momento em que o termo sustentabilidade é muito empregado – por vezes, sem qualquer critério –, até mesmo como estratégia de marketing. Vocês estão seguindo um caminho contrário?
A gente vem da área acadêmica, nascemos dentro da universidade. Sou professor, coordeno uma pós-graduação em Design para a sustentabilidade, no Mackenzie, então tenho uma preocupação muito grande com aquilo que a gente diz e aquilo que a gente faz. Sustentabilidade é um termo que, hoje, está sendo amplamente utilizado, mas suas definições ainda não caíram para a população de um modo geral. Academicamente, ele até tem definições bem sólidas, mas a maneira com que as pessoas se apropriam para comunicação, para o marketing, é muito pouco profunda. A gente tenta usar o design como comunicação e, através dele e do trabalho que a gente faz, mostrar o que é que estamos fazemos. É sustentabilidade? É, porque a gente desenvolve a viabilidade econômica desses grupos, a gente usa, na maior parte das vezes, materiais reutilizados, recuperados ou reciclados e, de fato, o benefício dessas duas ações vai para área social. Então, é sustentabilidade. Mas, se eu disse só “sustentabilidade”, algumas pessoas, principalmente as pessoas que não são da área de design, não estão envolvidas, o leigo que acessa o nosso site querendo entender o que são os produtos ou que comprou o produto, leu na tag e quer entender um pouco mais sobre o projeto, vão nos enxergar como mais uma entidade no meio de tantas outras que dizem que fazem sustentabilidade, nos associando a empresas como o Banco Real e o Santander. A gente não quer ser igual nem ao Real, nem ao Santander, então talvez por isso falamos a mesma coisa de uma maneira diferente.
Como o Design Possível enxerga a relação entre design e artesanato?
Essa é uma relação que existe e eu acho que a gente deve partir deste ponto. Há puritanos dos dois lados: uns dizem que o artesanato deve permanecer intocado e outros dizem que design que mexe com artesanato não é design. Há esses dois extremos. O que eu vivencio é que o design tem uma influência que pode permear todos os tipos de produção, inclusive o artesanato. Fica um pouco difícil de dizer onde é que está o limite desta relação, ou se existe, de fato, um limite. É verdade o que dizem os puritanos do lado do artesanato, que muitos designers, por não saberem ou por não terem clareza daquilo que pretendem, vão em direção ao artesanato e o matam. E é verdade o que dizem os puritanos do lado do design, que se você tomar o design unicamente como desenho industrial, na medida em que você se aproxima do artesanato, você se afasta dessa outra conotação, dessa outra origem. Mas acho que nenhum dos dois lados está totalmente correto. São experiências mal sucedidas do ponto de vista do artesanato e sentidos de utilização do design distantes da sua origem.
O artesanato hoje é uma realidade muito forte dentro do Brasil. Somos um país de pessoas que tem essa inquietude por fazer, pelo trabalho manual e pelo artesanato. O artesanato feito daquela maneira mais tradicional como a gente conhece permanece em regiões mais distantes. À medida que as pessoas foram se concentrando nas cidades, elas trouxeram essa cultura artesanal para a cidade e essa cultura se mesclou com o mercado, se misturou com outras culturas de pessoas que vieram de outros lugares, e tivemos o surgimento de outro tipo de artesanato, de outro tipo de manualidade, que é o que encontramos, por exemplo, na periferia. Quando chegamos à periferia, a gente encontra gente de Minas, do Nordeste, do Sul, com diferentes características artesanais. Eles perderam aquela identidade única, que o artesanato de raiz, da origem mesmo, do lugar dessas pessoas, tem. Isso não tira delas a vontade de fazer, não tira delas a vontade de construir. Ao contrario, cria uma nova perspectiva, porque essa pessoa, aqui na cidade, está ligada ao mercado de consumo, está ligada ao mercado de produção, ela quer fazer coisas. Mas aquele artesanato de origem não pode mais ser mais feito aqui, porque ela não tem mais a mesma cultura, não tem as pessoas de apoio, muitas vezes não tem os mesmos materiais. Então ela precisa inventar novas formas de fazer. Nessa realidade é que eu acho que o designer é ainda mais importante, porque ele pode potencializar essa ação para facilitar este processo. Nas comunidades mais distantes ele pode ajudar, mas o trabalho dele deve ser ainda mais criterioso, porque o risco de aculturar e transformar uma coisa que é histórica para o lado ruim é maior. Você sempre vai transformar. A partir do momento em que se cria a interferência, há transformação, mas, se você não tem ética e clareza sobre aquilo que você está fazendo, você corre o risco de anular, e é isso que é ruim.
Aqui no Brasil, a gente discute pouco até onde vai o limite do designer e até onde vai o limite do artesão e como esta articulação pode ser feita. Esta falha não é só dos órgãos que trabalham com design ou de pessoas que promovem o artesanato, é uma falha acadêmica também. O artesanato é muito malvisto dentro da universidade e a universidade não tem clareza em enxergar o papel do designer dentro deste mercado artesanal que pode ser aplicado com design. Com isso, a gente não forma gente preparada para lidar com isso e, ao não formar gente preparada para lidar com isso, a gente não tem discussão nesta área. Então acho que o primeiro ponto é exacerbar essa discussão, abri-la, para conseguir fazer com que pessoas que hoje estão dentro da universidade, os alunos e os professores, comecem a discutir esse papel e as pessoas que estão fora, que estão no mercado, comecem a atuar com mais propriedade e critério, para construirmos conhecimento nessa relação. Isso vai tanto favorecer quem já está fora, quanto ajudar a construir quem ainda está dentro da universidade.
De que forma o Design Possível promove esta interação? O designer vai às comunidades fazer uma interferência, adequando os produtos ao mercado? Entrega um desenho para o artesão desenvolver? O artesão participa desse processo?
Nesses grupos, a gente faz um trabalho de formação, e o objetivo é emancipá-los. Então a maneira com que a gente age dentro do grupo é diferente da forma com que os designers estão acostumados a agir dentro de uma indústria, por exemplo. Em uma indústria, eu posso desenhar o produto, ir até o cara da ferramentaria e dizer: “Olha, faça isso”. Em um grupo produtivo, em uma comunidade artesanal, se eu quero que ele se aproprie daquilo, eu nunca vou chegar com uma solução pronta. O artesão industrial, o ferramenteiro, é um funcionário, então a relação que ele tem com a empresa é outra: “Me paga, que eu venho ficar aqui tantas horas e eu faço”. A relação que temos com os grupos é diferente. Ajudamos pessoas a se tornarem grupos produtivos e ajudamos esses grupos produtivos a encontrarem uma fatia de mercado. Para isso, tem que ser deles e não nosso. Então o nosso trabalho é muito mais de articulação e mediação do que de identificação propriamente dita. Evitamos ao máximo chegar com idéias pré-concebidas. Colocamos os problemas para eles serem atores deste projeto. É claro que, nos diferentes momentos que o grupo vive, isso também muda.
No Projeto Arrastão, por exemplo, estamos indo para o terceiro grupo. O primeiro já está saindo da fase de incubação e vai se emancipar; o segundo vai entrar na fase de formação empreendedora; o terceiro vai começar agora, é um grupo novo, de mães. Para o grupo que está se emancipando, eu posso dar problemas que eles vão me trazer soluções em produtos, porque eles já vivenciaram esse processo. O grupo que está entrando na fase empreendedora precisa de um acompanhamento muito maior, precisa de um tutor durante o processo, senão eles não vão chegar ao resultado final e, se eles não chegarem ao resultado final, que é um produto para ser apresentado ao cliente, eles não vão conseguir vender, não vão ganhar dinheiro e o grupo não vai existir. O grupo que está começando precisa de ainda mais. Tudo o que eles vão ter nessa primeira etapa é uma consolidação técnica entre eles, então eles precisam ainda mais de acompanhamento.
Portanto, essa relação muda nos diferentes lugares em que a gente atua, mas ela é muito mais de mediação, de um olhar diferente, de entender como esse produto pode se inserir no mercado, do que um trabalho de construção de um novo produto propriamente dito. Às vezes, o trabalho que fazemos é simplesmente de reposicionamento: “Olha, esse mercado que você está é um mercado de baixo valor agregado e não dá para competir com esse tipo de produto; que tal usar essa mesma expertise e trabalhar em uma outra área?”. Então, às vezes, é um aconselhamento. Sinto que os grupos têm menos problemas com o desenvolvimento de produtos e mais problemas com gestão, com produção e com organização logística, organização de entregas. E acho que trabalhar essas outras áreas também é papel do designer. É mais difícil conseguir fazer com que o produto chegue com qualidade, fazer com que ele seja logisticamente adequado do ponto de vista do transporte, esse tipo de coisa. Esses são os aspectos que tem uma maior interferência do designer, mais do que a estética, pelo menos no caso das comunidades mais artesanais – essa é uma bagagem que elas já trazem. Mas, como falei, cada grupo tem uma característica diferente.
Você comentou que o artesanato ainda é muito malvisto nas universidades. No entanto, no 1° Prêmio Objeto Brasileiro, tivemos, entre os finalistas, três projetos oriundos em universidades (Design Possível, Imaginário Pernambucano e Sempre Savassi). Está havendo uma mudança?
Acho que estamos vivendo justamente este momento de descoberta das universidades e dos professores – principalmente os mais novos, os que estavam estudando na década de 1990, começo dos anos 2000 e que viram o florescer desse trabalho unindo design e artesanato. O que acontece? As pessoas estão voltando às universidades, alguns estão virando professores, como é o meu caso, e eles estão contribuindo para esse processo de transformação. Digo que existe uma resistência da universidade porque a sinto, sinto nos professores mais antigos, na maneira como eles tratavam estes trabalhos de maneira pejorativa. Hoje menos, hoje eles aceitam, indicam, até porque vêem o nível de sucesso que os trabalhos e projetos têm – estamos florescendo nessa área. A questão é que a universidade não tem essa cultura, não tem essa tradição.
Apoiar esse tipo de projeto, como o Design Possível ou esses outros em diferentes partes do Brasil, faz com que se construa conhecimento, e isso vai mudar, depois, a maneira como se ensina. Os relatos que tenho de projetos em diferentes lugares sempre contam como o projeto começa como uma atividade de pesquisa ou de extensão e não como uma atividade acadêmica, não dentro de sala de aula. Ele começa fora e depois ele vai trazer para dentro da sala de aula essa experiência. A gente já vem tendo um processo de transformação intenso a partir dos anos 2000 e, depois de 2005, este processo se aprofundou ainda mais, a gente começa a ver florescer em muitos lugares essa mesma experiência e potencial. Sinto isso até pela vontade da existência do Design Possível em outros lugares, quer dizer, o fato de termos gente querendo fazer em diferentes localidades é justamente isso, é a aplicação do design em si, é a vontade de professores e alunos de fazer, de romper com a maneira com que hoje os cursos estão construídos. Para isso, eles estão se apropriando, tentado desenvolver suas próprias ferramentas, seus próprios conhecimentos.
Quais as particularidades dos projetos que nascem dentro das universidades?
Acho que varia muito de acordo com a forma como o projeto nasce. Ele pode estar dentro da universidade e ter uma relação só acadêmica ou ele pode ter uma relação mais “mercadológica”. É claro que a origem dos estudantes, dos professores e de todos aqueles que estão envolvidos com este projeto acaba contribuindo nesta definição. Você traz o seu histórico, então se você é um professor mais ligado ao mercado, se alguém que já tem um escritório começar um projeto ligado ao terceiro setor, ele vai trazer esse olhar para dentro desse projeto. Quando a universidade estimula uma ação, ela tem um desejo claro: um trabalho extra-muro. Trata-se de uma atividade de extensão, em especial nas universidades. A universidade se sustenta no tripé pesquisa, ensino e extensão. Cada vez mais as universidades vem fortalecendo esse pé de extensão. A universidade é diferente da faculdade e é diferente do curso. Quando é universidade, a atividade de extensão é estimulada e nasce com essa vontade de pegar o conhecimento da pesquisa e do ensino, e aplicar fora para ver se ele é verdadeiro. Na faculdade, nem sempre isso acontece.
O recorte dado no nascimento do projeto não garante que ele vai seguir assim para sempre, é só olhar o próprio Design Possível, que nasceu muito mais como uma atividade de extensão. Eu poderia dizer “Olha vai sempre ser um projeto acadêmico, e a gente vai ficar trocando os estudantes, o projeto não vai se desenvolver”, mas o problema é que não existia mercado para que esses estudantes que estavam dentro do projeto saíssem para trabalhar com design social. Então a gente criou o mercado. A gente criou uma organização que pudesse aceitar esses estudantes, para que eles pudessem seguir construindo. Ou seja, o fato da gente ter nascido dentro da universidade não nos prendeu àquela origem de: “Ah, só vou pesquisar, fazer iniciação científica, construir o meu trabalho de conclusão, escrever um livro e o meu projeto vai ficar preso a isso”. Não. Inclusive, para consolidar a parte econômica – sustentável – e poder dar continuidade ao trabalho, deixamos a pesquisa em segundo plano. Sempre publicamos trabalhos, sempre tem gente envolvida com trabalho de graduação, mas o foco era tornar o Design Possível uma organização. E, no começo desse ano, fundamos, dentro do Design Possível, um negócio chamado LEDS, Laboratório de Estudos em Design e Sustentabilidade, que é uma tentativa de fazer, agora, o contrário. Se a gente está tendo sucesso econômico e na formação, agora está na hora da gente transformar esse sucesso de novo em conhecimento, em experiência e retorná-lo para a universidade – na forma de livro, de publicação, enfim. Diferente das outras áreas do Design Possível – a comercial, pedagógica – a gente entende que esse laboratório de estudos e pesquisa é transversal. Claro, ainda está no início, está nascendo dentro do Design Possível, então ele ainda vai criar forças, mas a idéia é que ele beba dessas experiências mais diretas para poder retornar. Olhando para essas duas observações, acho que nenhuma delas está errada, nem também totalmente certas. Acho que existe a possibilidade das duas coisas, de você ficar preso pelo universo acadêmico, se essa for a sua postura – e, de fato, a universidade tem esse desejo de: “Ah, esse projeto é meu” –, mas a universidade fornece também um respaldo para o início, que permite maior ousadia do que um negócio simplesmente focado em venda ou desenvolvimento de produtos teria. Um negócio nunca estaria preocupado com a perpetuação do conhecimento, com a seqüência da atividade, por isso que você encontra, nos trabalhos acadêmicos, maior fundamentação com relação ao que está sendo feito.
Como os alunos recebem este tipo de projeto? Há uma nova geração preocupada com todas essas questões?
As pessoas desta faixa etária buscam, agora, outro tipo de sucesso. Não sou eu que estou falando isso. A expressão geração Y foi criada justamente para designar esta mudança. Hoje, jovens buscam muito mais o engajamento. O sucesso econômico, que é o que a geração anterior buscava, não é mais suficiente para satisfazer e trazer felicidade. Sinto que uma porcentagem maior dos alunos tem, de fato, outros objetivos. Querem, claro, ganhar dinheiro, construir uma vida bacana, alguns querem se tornar professores, outros querem ser famosos, mas muitos deles querem usar o conhecimento, usar aquilo que eles escolheram como profissão, em prol da sociedade. Sem deixar de ganhar dinheiro, sem deixar de ficar famoso, querem que aquilo que eles estão fazendo faça sentido, que faça sentido de uma maneira mais ampla, querem se sentir bem com aquilo que eles fazem. Acho que essa é uma preocupação, um tipo de engajamento, que as gerações anteriores tinham em menor proporção. Havia menos gente preocupada, se aquilo que estavam fazendo fazia sentido ou não. “Ah, mandou eu jogar lixo nuclear aqui no buraco, está pagando bem, estou jogando”. Até esse tipo de expressão é muito característica: “Tá pagando bem, que mal tem?”. Não é isso? “Pagando, tudo bem”. Hoje há uma porcentagem menor de gente que escolhe se submeter a qualquer tipo de trabalho ou a qualquer tipo de ação, simplesmente para conquistar dinheiro ou fama. Pelo menos na área de design, eu sinto que tem cada vez mais estudantes engajados ou buscando esse sentido. No Mackenzie a gente tem um semestre que é Projeto Socioambiental, então agora eles têm essa experiência dentro da grade, que é uma coisa recente, de três ou quatro anos para cá. Eu vejo que esses alunos, mesmo depois, indo para o mercado, mudam o olhar, muda a maneira como eles vão se relacionar com o mercado. Conseqüentemente, a gente vai ter, em cinco ou dez anos, uma mudança do mercado, o mercado vai estar mais aberto e mais permeável a produtos que tragam um outro tipo de benefício social. É um processo de mudança gradativa e essas experiências dentro da universidade, esses trabalhos de referência, são importantes para mostrar que é possível. Porque senão a primeira impressão de quem está na faculdade, está procurando, é: “nessa área eu não vou, eu não quero, isso é um sonho que não é válido”.
E agora o outro lado. Como o mercado tem recebido esse tipo de produto?
A gente tem níveis diferentes de consumidores. No Design Possível a gente tem operações de venda, que são tanto para o consumidor final quanto para empresas. No trabalho direto com o consumidor, eu acho que ele se surpreende quando a gente diz que aquele produto é um produto feito com material recuperado, ou que aquele produto é feito numa comunidade carente. Conseguimos alcançar um nível de qualidade e de confiabilidade no design, que faz com que o produto não pareça com a imagem que o consumidor tinha do produto social. A gente usa, brincando, a expressão “guarda-pó”. A maior parte dos produtos sociais hoje, principalmente aqueles que não utilizam o design como estratégia, como ferramenta, são “guarda-pó”, ou seja, coisas que você compra para ajudar a organização e o grupo, mas que não vai utilizar de fato. Com a entrada do design, você tem a possibilidade de mudar isso, usar aquela mesma técnica, o saber, o conhecimento material, mas tornar aquilo uma coisa mais útil para o usuário. A gente tem até casos engraçados. No caso do Arrastão, quando os consumidores vêem as sacolas, dizem: “Não dá para me dar duas dessas aqui?”. “Não dá, porque elas são feitas de material recuperado, não tem duas iguais”. “Mas como assim não tem duas iguais? Eu quero outra igual!”. Então tem também uma mudança de percepção do consumidor. O material tinha sido jogado fora e virou uma bolsa, está bem acabado. Aí o consumidor fala: “Mas foi feito na favela mesmo?” Eles ficam até um pouco incrédulos. O mais difícil, hoje, é fazer com que os produtos evidenciem a história que está por trás dele. Esse é um papel importante do designer. Estamos trabalhando em um projeto que se chama A invisível história por trás dos produtos. A bolsa comum não diz de onde ela veio, quem foi que produziu. Então a gente precisa tentar comunicar isso. Esse é o papel do designer agora, com um trabalho de comunicação mais profissional, um trabalho de identificação e identidade dos produtos, para que o consumidor perceba qual é aquele produto. Se fizermos um produto na comunidade da mesma forma que os chineses fazem produtos na China, a gente nunca vai conseguir competir, porque você olha para as duas sacolas, por exemplo, e elas são iguais, não tem diferença. A diferença está na história que cada um deles carrega e no benefício que cada um deles, ao ser comprado pelo consumidor, gera. Isso é o que as empresas também procuram. As empresas querem comprar produtos sustentáveis, que tenham um engajamento social, porque elas querem ligar a marca delas a esse tipo de postura. Não tem outra intenção. Não é porque é mais barato, não é porque quer ajudar. As empresas precisam se aproximar desse mercado para melhorar sua imagem e fazer jus à divulgação sustentável que elas estão fazendo. Não adianta eu bradar para todo mundo que eu quero ser sustentável e depois comprar sacolas de PVC feitas na China. Eu preciso buscar outros fornecedores, outras formas de fazer com que o meu negócio exista com outro tipo de consumo. O consumo não muda só no consumidor na ponta, muda também nas empresas. Temos até trabalhado na formação de grupos de compradores sociais. Essa questão da sustentabilidade, do desenvolvimento social, já está consolidada no alto escalão. Os gestores, a parte estratégica, o marketing, todo mundo já entendeu e divulga isso. Só que ainda não é fácil capilarizar isso dentro da estrutura, porque o responsável pelas compras, o pessoal do almoxarifado, esses aí não entenderam ainda. Teremos agora esse trabalho de fazer isso descer das esferas superiores para a estrutura da empresa. E aí o responsável pelas compras vai perceber que pode comprar um produto de uma comunidade e pode comprar um produto de uma empresa. Às vezes ele vai optar pela empresa e às vezes ele vai optar pela comunidade. E os dois vão ter benefícios, resultados e imagens completamente diferentes, muitas vezes sendo o mesmo produto. Você pode ter o mesmo produto e um resultado de imagem ou de logística completamente distintos. É o que os consumidores já perceberam há mais tempo. Se eu tenho que comprar, porque não escolher alguma coisa que traga benefícios para a minha sociedade, para aquilo que está perto de mim? Se eu vou ter que comprar uma cadeira, vou escolher uma que ajude a não ter, depois, um menino no sinal, que ajude a não ter desabamento na favela, que ajude a melhorar os problemas que hoje a gente encontra em um ambiente como São Paulo.
Em 2008, fui, junto com uma colega, conhecer a favela Monte Azul onde há, inclusive, uma loja com produtos do Design Possível. Em determinado momento, dois rapazes passaram por nós e um disse para o outro: “Olha os gringos aí”, em um tom bastante pejorativo e expressando um grande desconforto com a nossa presença. Como os designer e alunos – em sua maioria brancos, de classe média ou alta – são recebidos nas favelas em que vocês trabalham?
Essa é a primeira imagem que vai cair. E este é, talvez, um produto que, a médio prazo, tenha maior sucesso dentro do Design Possível. Tenho três alunos no Mackenzie que são ou eram da Monte Azul. O trabalho de convívio com a comunidade, também muda o perfil do universitário. Toda segunda e sexta-feira, eu dou aula para o Samuel, que trabalha no operacional e dou aula para o Ronaldo, que está na loja. Claro, eles se sentiram estimulados, a gente facilitou o acesso, conseguimos bolsa etc., porque a gente esteve lá e despertou isso neles. Antes deles, o Roberto da Monte Azul também tinha feito esse trabalho. A gente tem outros dois alunos do Projeto Arrastão. Essas são as pessoas que eu imagino que, a médio prazo, vão substituir o Design Possível nessas comunidades. Para que você precisa de um designer de fora? Você deveria ter um designer de dentro. Por que não formar um designer lá dentro? Em quatro anos, a gente já vai ter esses meninos formados e com experiências para atuar sozinhos tanto na Monte Azul quanto no Arrastão, sem precisar da gente. Essa vai ser a primeira mudança.
A impressão que tive na época da visita era a de que talvez eles não quisessem a presença de pessoas de fora. Pensei que, talvez, este tipo de trabalho seja mais interessante para quem está conduzindo e propondo do que para quem está recebendo, digamos assim. Muitas vezes, a simples entrada de um estranho em uma favela com o objetivo de levar projetos pode interpretada como uma violência.
Acho que quando não é bem conduzido, é uma violência mesmo. Mas, ao contrário, sinto sempre uma muito boa acolhida. Acho que ela é diferente para cada um dos lugares e precisa ser muito bem conduzida. A gente não tem aulas de relacionamento nas faculdades e isso é um conteúdo que nós temos que passar para os educadores que trabalham com a gente, senão o primeiro impacto é sempre negativo. É claro que quem está do outro lado, que já tem uma auto-estima muito mais baixa, que já tem muita dificuldade, vai ficar sempre na defensiva. Então questões muito simples, como postura, o jeito como se chega, a forma como se dirige – que em qualquer outro lugar não teriam relevância – são muito importantes neste tipo de trabalho. Tem coisas que não tem nada a ver com design. Por exemplo: é muito importante abraçar as pessoas, cumprimentar todo mundo. Esse tipo de relacionamento é sentido muito mais rapidamente do que o retorno do trabalho que você faz. É preciso um outro tipo de atitude. Talvez isso seja uma coisa minha, talvez seja porque estamos em várias organizações diferentes. Acho que este tipo de repulsa é localizada, não sinto nos outros lugares.
Reportagem extraída na íntegra do site "A Casa - museu do objeto brasileiro", disponível em: http://www.acasa.org.br/ensaio.php?id=237&modo=
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